capítulo de 'Plutarco Védico' isbn 978-85-906438-0-7
Aproveitemos de
duas partes do texto anterior de Ananda Coomaraswamy para explicar um
pedaço da história romana que estamos vendo
concomitantemente : o escudo que desce do céu.
Numa, o rei
sabino que sucede Rômulo, estabelece, fixa e determina os
rituais que prosseguirão na prática diária e na
história deste povo. Tanto Plutarco quanto Ovídio são
unânimes nos fatos. Amigo de Pitágoras, das musas e
esposo / amante da Ninfa Egéria em bosque com fonte na
floresta, na Roma ainda nascente, Numa conversa com os sátiros
de chifres e pés de bode, Pico e Fauno. Conversa com o próprio
Júpiter ( Diu ( Dziu, Dzeu )-pater ).
A história
começa quando se vê o povo belicoso tomado da peste da
guerra, da epidemia da violência, da volúpia da ira :
atracam-se sem parar, em brigas sem fim. Ovídio conta a
história em seus Fastos assim como Plutarco em sua
Vida de Numa que descreve as festas romanas, esta no início
de março, comemora Júpiter Elísio, desligado,
acalmado, aplacado.( sendo o mesmo verbo gr. que aparece em 'kirie
eleison', o quê nos coloca em plena liturgia da religião
que justamente pede a misericórdia, amor, caridade diante da
justiça, rigor ).
Numa querendo
apaziguar o povo oferece pão e vinho em sacrifício mas
o sinal que recebe dos céus são mais raios, relâmpagos
e trovões. Sua esposa então, Egéria, diz que há
como acalmar Deus e fala para amarrar, prender, atar, os sátiros
Pico e Fauno que habitam justamente aquela fonte e bosque ali bebendo
água dela : os gênios e semideuses amarrados por Numa.
Como com Proteu amarrado, preso, no norte d'África, por
Menelau e Helena voltando para casa depois da guerra de Tróia,
eles trocam de forma para tentar se soltar, transformando-se, na
aparência de todos os bichos - em vão. Apenas são
soltos depois de dizerem que sim, Deus se apresentará a ele,
Numa. O que acontece em seguida : Dius pater pede que decepe uma
cabeça, Numa diz que as há no cebolal ; 'Cabeça
humana' teima o Deus , responde o rei querendo a calma 'com cabelos,
vou tosquiá-la' ; 'Com viventes' disse Deus, 'Ofereço
um peixe' diz Numa : 'Assim seja' responde Júpiter sorrindo :
“Desarma-me dessarte, homem ditoso, mortal que estás gozando
meu colóquio ! Amanhã quando o Sol já for
nascido, clara aprovação te darei de império.”
Na
manhã seguinte em tosco trono com o Povo ao redor, “as pias
mãos aos deuses conhecidas, para os deuses levanta ... desce
do céu em brandas auras boiando etéreo escudo , alta
celeuma sobe uníssona ... alça da terra o dom e porque
o vê em torno boleado e sem ângulos, põe-lhe o
nome de Ancílio, nome que Juba, segundo Plutarco,
dedicou-se a afirmar que era grego referindo-se a ter o escudo
descido dos céus, an-
, e ao fato que aos Dióscuros, os atenienses chamavam de
anaces
posto que filhos de Dzeus. Neste ponto Plutarco fala de Pico e Fauno
: “Estes
nas outras coisas pareciam da raça dos Sátiros e Pans ;
porém em virtude dos remédios e prestígios que
usavam em quanto as coisas divinas, os compararia melhor aos que os
gregos chamam de dáctilos ideos, nome popular dos curetes, que
em Creta eram os ministros da religião. Os chamavam dáctilos
por ser dez como os dedos das mãos ; Ideos pelo monte Ida,
berço de Júpiter [ com seu barulho de armas que
entrechocavam-se como na dança mesma a qual contamos a
história originada com a descida deste escudo dos céus
em Roma, os curetes escondiam de Kronos, o pai que engulia os filhos,
ficando todos no estômago dele, de onde depois saíram,
cobriam, escondiam, o barulho que Dius pater fazia ainda em seu
berço, criança, nenem em Creta ]. Bastava nomear os dez
dáctilos em ordem para prevenir-se dos males. Embaixadores
pois como eles andavam correndo pela Italia”.
O
fato contudo é o que acabamos de dizer, o escudo descido dos
céus origina a tradição bem viva ainda na
Espanha e no Brasil ( onde se chama makulelê ) da dança
com armas em que batem-se uns aos outros. Deixemos Jean Bayet falar :
“ Um
escudo bilobado cae do céu ; e Numa faz com que se fabrique
mais onze iguais pelo ferreiro Mamurius Veturius ( = Marte ? [ Bayet
com a pergunta questiona aqui a posição completamente
errada de Georges Dumèzil que simplesmente coloca ser falsa a
etimologia do nome do ferreiro veterem memoriam
dada por Varro em Lingua Latina
e por Plutarco que ainda acrescenta que é tradição
antiga ! O significado esclarecido por Ananda Coomaraswamy do objeto
de arte que cae do céu mostra que sim é uma 'memória
antiga' no sentido de método antigo, arte antiga produzida por
rito metafísico, de origem sobrehumana. Mamurius Veturius,
veterem memoriam no
sentido de método conforme os textos de Coomaraswamy que
seguem em seguida ] ). Estes doze ancilia estavam colocados na Curia
Saliorum no Palatino, que
guardava o bastão augural de Rômulo. No primeiro de
março os Sálios os 'colocavam em movimento'. Mas eles
se mexiam sozinhos em caso de perigo. Como também o faziam as
'lanças de Marte' na Regia
do forum. Sua 'mobilização' pelos padres dançarinos
é, ela, funcional. De estação em estação
( mansiones ) através
da Cidade eles acordavam a consciência da necessidade sazonal
da guerra. Os lugares consagrados onde eles paravam , os Sálios,
conduzidos pelo Magister, e levados pelo primeiro dançarino (
praesul ) e um
'cantador inspirado' ( vates
), saltavam no ritmo ternário batendo os escudos com um bastão
curto e cantando uma invocação na forma de litanias. À
tarde, os anciles eram depositados no local da mansio
e os Sálios banqueteavam-se A partir de 9 de março se
sucediam os ritos mais e mais urgentes : corridas de cavalos das
Equirria no 14 ;
lustração das armas ( armilustrium ),
e dança no Comitium no 19 ( dia de Quinquatrus
) ; lustração das trombetas de guerra no Palatino no 23
( Tubilustrium ) ; e
dia 26, os Sálios assistem a um sacrifício solene feito
pelo Rei – depois pelo Rex Sacrorum .” Jean Bayet, La religion
romaine, Payot, Paris, página 86.
Aqui
os textos do grande historiador da arte no artigo 'Natureza da Arte
Budista' que reproduzimos anteriormente, sobre este acontecimento,
sobre este método antigo de arte :
“A
prática de uma arte não é tradicionalmente, como
é para nós, uma atividade secular, ou mesmo uma matéria
de “inspiração” afetiva, mas um rito metafísico
; não é somente as primeiras imagens que são
formalmente de origem superhumana. Nenhuma distinção
pode ser desenhada entre arte e contemplação. Ao
artista primeiro de tudo, requer-se que remova-sede níveis de
apercepção [intuição] humano para
celestiais ; neste nível e estado de unificação,
não mais tendo em vista qualquer coisa externa a ele mesmo,
ele vêe entende, quer dizer torna-se, o quê ele
representará depois em material trabalhado. Esta identificação
do artista com a forma imitávelda idéia a ser expressa
é insistida repetidamente nos livros Indianos, e responde à
premissa Escolástica como estabelecida nas palavras de Dante,
“Nenhum pintor pode pintar uma figura, se ele não tiver
primeiro que tudo feito a si mesmo tal como a figura deve ser.”
Este
último artista não está, então, imitando
o estilo ou aspecto visual das imagens primeiras, as quais ele pode
nunca ter visto, mas sua forma ; a autenticidade das imagens últimas
não depende de um saber acidental (tal como com que nosso
“Gótico moderno” é construído) em um
retorno à fonte em um sentido bem outro. É justo isto
que é tão bem expresso na lenda da imagem de Buddha de
Udāyana, que é dito ter voado através do ar para
Khotān27
e então estabelecido a legitimidade da linhagem da iconografia
Chinesa e da Ásia Central28.
“Voar através dos ares” é sempre uma técnica
implicando independência da posição local e
habilidade para atingir qualquer plano desejado de apercepção
: uma forma ou idéia é “alada” precisamente naquele
sentido em que o Espírito está onde quer que ele opere
e entretenha-se, e não pode ser uma propriedade privada. O
que a lenda nos conta não é que uma imagem de pedra ou
madeira voou através dos ares ; ela nos conta contudo, que o
artista Khotanese viu o que o artista de Udāyana viu, a forma
essencial da primeira imagem : aquela mesma forma que o artista de
Udāyana similarmente viu antes de retornar a terra e tomar o cinzel
ou pincel. ...”
“Aludimos
acima ao “vôo pelos ares “ da imagem Udāyana de Buddha da
Índia ao Khotān, cuja imagem se tornou de fato, como
Chavannes observa, o protótipo de muitas outras modeladas na
Ásia Central. Repetimos, em primeiro lugar, que, a existência
mesma de uma “imagem de Udāyana” feita em vida de Buddha é
da mais alta improbabilidade. Em segundo lugar, o quê se quer
realmente dizer por “vôo aéreo” e “desaparecimento”
? A expressão Sânskrita comum para “desaparecer” é
antar-dhānam gam,
literalmente “ir-interior-posição.” No Kālingabodhi
Jātaka (No. 479),
vôo pelos ares depende de uma “investidura do corpo em roupas
de contemplação “( jhāna
vethanena ).
Como Sr. Mus muito acertadamente ressaltou em outra conexão,
“Todo o milagre resulta pois de uma disposição
íntima” ( BÉFEO
, 1929, p. 435 ). Não está envolvida aqui então
uma matéria de translocação física, mas
literalmente uma de concentração ; o de atingir um
centro que é onipresente, e não um movimento local.
Isto é totalmente uma matéria de “ser no Espírito”
como esta expressão é usada por S. Paulo : aquele
Espírito ( ātman
) de quem é dito que “Sentado, ele vai a todo lugar, deitado
ele vai a toda parte “( KU, II, 21 ).32
De que importância em tal contexto pode ser uma discussão
da possibilidade ou imposssibilidade de uma levitação
ou translocação real ? O quê está
implicado na designação “o que se move (n)a vontade”
( kāmâcārin
)
é a condição de alguém que estando no
Espírito não precisa mais mover-se de modo algum de
modo a estar em algum lugar. Nem qualquer distinção
pode ser feita entre o intelecto possível e as idéias
que ele entretem in
adaequatione rei et intellectus :
falar de uma onipresença intelectual é falar de uma
onipresença das formas ou idéias que não têm
existência objetiva fora do intelecto universal que as
entretêm. A lenda não se refere a transferência
física de uma imagem material, mas a universalidade de uma
forma imutável que pode ser vista, tanto pelos contemplativos
Khotaneses quanto pelos Indianos ; onde o historiador da arte veria o
que é chamado a “influência” da arte Indiana na Ásia
Central, a lenda assevera uma imaginação independente
da mesma forma. Será visto que não tínhamos em
vista explicar o milagre ; mas indicar que a maravilha é
aquela da disposição interior e que o poder de vôo
aéreo não é nada como o do aeroplano, mas tem a
ver com a extensão da consciência a outros níveis
de referência que os físicos, e de fato, ao “cume do
ser contingente.” 33
“
27
Hsüan-tsang, Buddhist
Records,Beal, II, 322.
28 Para uma imagem chamada
“Udāyana’s” em Lung-men, ver Chavannes, loc. cit.,
p.392, e Mus, “Le bouddha paré,”BÉFEO, 1928,
p.249.
32
Hermes, Lib.
XI, 11, 19 (Scott, Hermetica, I ,221) “ Todos os
corpos estãosubmetidos ao movimento ; mas aquilo que é
incorpóreo é sem movimento, e as coisas situadas nele
não têm movimento . . . Lance sua alma em viagem a
qualquer terra que você escolha, e tão logo você
a lance, ela estará lá . . . ela não se moveu
como alguém que se move de um lugar para outro, mas ela está
lá. Lance-a voando ao céu, e ela não precisará
de asas.” RV, VI, 9, 5 “Mente (manas, νούς ) é
o mais rápido dos pássaros “; PB XIV, 1, 13 “O que
Compreende é alado “( yo vai vidvānsas te paksinah ).
33 “ Pois o ser humano é
um ser de natureza divina . . . o que além disso émais
que tudo, ele sobe ao céu sem deixar a terra ; para uma
distância tão vasta quanto seu poder pode levá-lo
“ ( Hermes, Lib. X, 24, Scott,
Hermetica,
I, 205 ).
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