quarta-feira, 4 de setembro de 2013

[ n. do tr. : o escudo que desce dos céus ]

         
 capítulo de 'Plutarco Védico'    isbn 978-85-906438-0-7

            Aproveitemos de duas partes do texto anterior de Ananda Coomaraswamy para explicar um pedaço da história romana que estamos vendo concomitantemente : o escudo que desce do céu. 

Numa, o rei sabino que sucede Rômulo, estabelece, fixa e determina os rituais que prosseguirão na prática diária e na história deste povo. Tanto Plutarco quanto Ovídio são unânimes nos fatos. Amigo de Pitágoras, das musas e esposo / amante da Ninfa Egéria em bosque com fonte na floresta, na Roma ainda nascente, Numa conversa com os sátiros de chifres e pés de bode, Pico e Fauno. Conversa com o próprio Júpiter ( Diu ( Dziu, Dzeu )-pater ).
A história começa quando se vê o povo belicoso tomado da peste da guerra, da epidemia da violência, da volúpia da ira : atracam-se sem parar, em brigas sem fim. Ovídio conta a história em seus Fastos assim como Plutarco em sua Vida de Numa que descreve as festas romanas, esta no início de março, comemora Júpiter Elísio, desligado, acalmado, aplacado.( sendo o mesmo verbo gr. que aparece em 'kirie eleison', o quê nos coloca em plena liturgia da religião que justamente pede a misericórdia, amor, caridade diante da justiça, rigor ).
Numa querendo apaziguar o povo oferece pão e vinho em sacrifício mas o sinal que recebe dos céus são mais raios, relâmpagos e trovões. Sua esposa então, Egéria, diz que há como acalmar Deus e fala para amarrar, prender, atar, os sátiros Pico e Fauno que habitam justamente aquela fonte e bosque ali bebendo água dela : os gênios e semideuses amarrados por Numa. Como com Proteu amarrado, preso, no norte d'África, por Menelau e Helena voltando para casa depois da guerra de Tróia, eles trocam de forma para tentar se soltar, transformando-se, na aparência de todos os bichos - em vão. Apenas são soltos depois de dizerem que sim, Deus se apresentará a ele, Numa. O que acontece em seguida : Dius pater pede que decepe uma cabeça, Numa diz que as há no cebolal ; 'Cabeça humana' teima o Deus , responde o rei querendo a calma 'com cabelos, vou tosquiá-la' ; 'Com viventes' disse Deus, 'Ofereço um peixe' diz Numa : 'Assim seja' responde Júpiter sorrindo : “Desarma-me dessarte, homem ditoso, mortal que estás gozando meu colóquio ! Amanhã quando o Sol já for nascido, clara aprovação te darei de império.”
Na manhã seguinte em tosco trono com o Povo ao redor, “as pias mãos aos deuses conhecidas, para os deuses levanta ... desce do céu em brandas auras boiando etéreo escudo , alta celeuma sobe uníssona ... alça da terra o dom e porque o vê em torno boleado e sem ângulos, põe-lhe o nome de Ancílio, nome que Juba, segundo Plutarco, dedicou-se a afirmar que era grego referindo-se a ter o escudo descido dos céus, an- , e ao fato que aos Dióscuros, os atenienses chamavam de anaces posto que filhos de Dzeus. Neste ponto Plutarco fala de Pico e Fauno : “Estes nas outras coisas pareciam da raça dos Sátiros e Pans ; porém em virtude dos remédios e prestígios que usavam em quanto as coisas divinas, os compararia melhor aos que os gregos chamam de dáctilos ideos, nome popular dos curetes, que em Creta eram os ministros da religião. Os chamavam dáctilos por ser dez como os dedos das mãos ; Ideos pelo monte Ida, berço de Júpiter [ com seu barulho de armas que entrechocavam-se como na dança mesma a qual contamos a história originada com a descida deste escudo dos céus em Roma, os curetes escondiam de Kronos, o pai que engulia os filhos, ficando todos no estômago dele, de onde depois saíram, cobriam, escondiam, o barulho que Dius pater fazia ainda em seu berço, criança, nenem em Creta ]. Bastava nomear os dez dáctilos em ordem para prevenir-se dos males. Embaixadores pois como eles andavam correndo pela Italia”.
O fato contudo é o que acabamos de dizer, o escudo descido dos céus origina a tradição bem viva ainda na Espanha e no Brasil ( onde se chama makulelê ) da dança com armas em que batem-se uns aos outros. Deixemos Jean Bayet falar :

Um escudo bilobado cae do céu ; e Numa faz com que se fabrique mais onze iguais pelo ferreiro Mamurius Veturius ( = Marte ? [ Bayet com a pergunta questiona aqui a posição completamente errada de Georges Dumèzil que simplesmente coloca ser falsa a etimologia do nome do ferreiro veterem memoriam dada por Varro em Lingua Latina e por Plutarco que ainda acrescenta que é tradição antiga ! O significado esclarecido por Ananda Coomaraswamy do objeto de arte que cae do céu mostra que sim é uma 'memória antiga' no sentido de método antigo, arte antiga produzida por rito metafísico, de origem sobrehumana. Mamurius Veturius, veterem memoriam no sentido de método conforme os textos de Coomaraswamy que seguem em seguida ] ). Estes doze ancilia estavam colocados na Curia Saliorum no Palatino, que guardava o bastão augural de Rômulo. No primeiro de março os Sálios os 'colocavam em movimento'. Mas eles se mexiam sozinhos em caso de perigo. Como também o faziam as 'lanças de Marte' na Regia do forum. Sua 'mobilização' pelos padres dançarinos é, ela, funcional. De estação em estação ( mansiones ) através da Cidade eles acordavam a consciência da necessidade sazonal da guerra. Os lugares consagrados onde eles paravam , os Sálios, conduzidos pelo Magister, e levados pelo primeiro dançarino ( praesul ) e um 'cantador inspirado' ( vates ), saltavam no ritmo ternário batendo os escudos com um bastão curto e cantando uma invocação na forma de litanias. À tarde, os anciles eram depositados no local da mansio e os Sálios banqueteavam-se A partir de 9 de março se sucediam os ritos mais e mais urgentes : corridas de cavalos das Equirria no 14 ; lustração das armas ( armilustrium ), e dança no Comitium no 19 ( dia de Quinquatrus ) ; lustração das trombetas de guerra no Palatino no 23 ( Tubilustrium ) ; e dia 26, os Sálios assistem a um sacrifício solene feito pelo Rei – depois pelo Rex Sacrorum .” Jean Bayet, La religion romaine, Payot, Paris, página 86.

Aqui os textos do grande historiador da arte no artigo 'Natureza da Arte Budista' que reproduzimos anteriormente, sobre este acontecimento, sobre este método antigo de arte :
A prática de uma arte não é tradicionalmente, como é para nós, uma atividade secular, ou mesmo uma matéria de “inspiração” afetiva, mas um rito metafísico ; não é somente as primeiras imagens que são formalmente de origem superhumana. Nenhuma distinção pode ser desenhada entre arte e contemplação. Ao artista primeiro de tudo, requer-se que remova-sede níveis de apercepção [intuição] humano para celestiais ; neste nível e estado de unificação, não mais tendo em vista qualquer coisa externa a ele mesmo, ele vêe entende, quer dizer torna-se, o quê ele representará depois em material trabalhado. Esta identificação do artista com a forma imitávelda idéia a ser expressa é insistida repetidamente nos livros Indianos, e responde à premissa Escolástica como estabelecida nas palavras de Dante, “Nenhum pintor pode pintar uma figura, se ele não tiver primeiro que tudo feito a si mesmo tal como a figura deve ser.” Este último artista não está, então, imitando o estilo ou aspecto visual das imagens primeiras, as quais ele pode nunca ter visto, mas sua forma ; a autenticidade das imagens últimas não depende de um saber acidental (tal como com que nosso “Gótico moderno” é construído) em um retorno à fonte em um sentido bem outro. É justo isto que é tão bem expresso na lenda da imagem de Buddha de Udāyana, que é dito ter voado através do ar para Khotān27 e então estabelecido a legitimidade da linhagem da iconografia Chinesa e da Ásia Central28. “Voar através dos ares” é sempre uma técnica implicando independência da posição local e habilidade para atingir qualquer plano desejado de apercepção : uma forma ou idéia é “alada” precisamente naquele sentido em que o Espírito está onde quer que ele opere e entretenha-se, e não pode ser uma propriedade privada. O que a lenda nos conta não é que uma imagem de pedra ou madeira voou através dos ares ; ela nos conta contudo, que o artista Khotanese viu o que o artista de Udāyana viu, a forma essencial da primeira imagem : aquela mesma forma que o artista de Udāyana similarmente viu antes de retornar a terra e tomar o cinzel ou pincel. ...”

Aludimos acima ao “vôo pelos ares “ da imagem Udāyana de Buddha da Índia ao Khotān, cuja imagem se tornou de fato, como Chavannes observa, o protótipo de muitas outras modeladas na Ásia Central. Repetimos, em primeiro lugar, que, a existência mesma de uma “imagem de Udāyana” feita em vida de Buddha é da mais alta improbabilidade. Em segundo lugar, o quê se quer realmente dizer por “vôo aéreo” e “desaparecimento” ? A expressão Sânskrita comum para “desaparecer” é antar-dhānam gam, literalmente “ir-interior-posição.” No Kālingabodhi Jātaka (No. 479), vôo pelos ares depende de uma “investidura do corpo em roupas de contemplação “( jhāna vethanena ). Como Sr. Mus muito acertadamente ressaltou em outra conexão, “Todo o milagre resulta pois de uma disposição íntima” ( BÉFEO , 1929, p. 435 ). Não está envolvida aqui então uma matéria de translocação física, mas literalmente uma de concentração ; o de atingir um centro que é onipresente, e não um movimento local. Isto é totalmente uma matéria de “ser no Espírito” como esta expressão é usada por S. Paulo : aquele Espírito ( ātman ) de quem é dito que “Sentado, ele vai a todo lugar, deitado ele vai a toda parte “( KU, II, 21 ).32 De que importância em tal contexto pode ser uma discussão da possibilidade ou imposssibilidade de uma levitação ou translocação real ? O quê está implicado na designação “o que se move (n)a vontade” ( kāmâcārin ) é a condição de alguém que estando no Espírito não precisa mais mover-se de modo algum de modo a estar em algum lugar. Nem qualquer distinção pode ser feita entre o intelecto possível e as idéias que ele entretem in adaequatione rei et intellectus : falar de uma onipresença intelectual é falar de uma onipresença das formas ou idéias que não têm existência objetiva fora do intelecto universal que as entretêm. A lenda não se refere a transferência física de uma imagem material, mas a universalidade de uma forma imutável que pode ser vista, tanto pelos contemplativos Khotaneses quanto pelos Indianos ; onde o historiador da arte veria o que é chamado a “influência” da arte Indiana na Ásia Central, a lenda assevera uma imaginação independente da mesma forma. Será visto que não tínhamos em vista explicar o milagre ; mas indicar que a maravilha é aquela da disposição interior e que o poder de vôo aéreo não é nada como o do aeroplano, mas tem a ver com a extensão da consciência a outros níveis de referência que os físicos, e de fato, ao “cume do ser contingente.” 33
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27 Hsüan-tsang, Buddhist Records,Beal, II, 322.
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28 Para uma imagem chamada “Udāyana’s” em Lung-men, ver Chavannes, loc. cit., p.392, e Mus, “Le bouddha paré,”BÉFEO, 1928, p.249.
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32 Hermes, Lib. XI, 11, 19 (Scott, Hermetica, I ,221) “ Todos os corpos estãosubmetidos ao movimento ; mas aquilo que é incorpóreo é sem movimento, e as coisas situadas nele não têm movimento . . . Lance sua alma em viagem a qualquer terra que você escolha, e tão logo você a lance, ela estará lá . . . ela não se moveu como alguém que se move de um lugar para outro, mas ela está lá. Lance-a voando ao céu, e ela não precisará de asas.” RV, VI, 9, 5 “Mente (manas, νούς ) é o mais rápido dos pássaros “; PB XIV, 1, 13 “O que Compreende é alado “( yo vai vidvānsas te paksinah ).

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33 “ Pois o ser humano é um ser de natureza divina . . . o que além disso émais que tudo, ele sobe ao céu sem deixar a terra ; para uma distância tão vasta quanto seu poder pode levá-lo “ ( Hermes, Lib. X, 24, Scott, Hermetica, I, 205 ).

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